quarta-feira, 13 de abril de 2011

Coisas do nosso idioma

O substantivo "coisa" assumiu tantos valores que cabe em quase todas  as situações cotidianas
 
 
 A palavra "coisa" é um bombril do idioma. Tem mil e uma utilidades. É  aquele tipo de termo-muleta ao qual a gente recorre sempre que nos  faltam palavras para exprimir uma idéia. Coisas do português.
 
 A natureza das coisas: gramaticalmente, "coisa" pode ser substantivo,  adjetivo, advérbio. Também pode ser verbo: o Houaiss registra a forma  "coisificar". E no Nordeste há "coisar": "Ô, seu coisinha, você já  coisou aquela coisa que eu mandei você coisar?".
 
 Coisar, em Portugal, equivale ao ato sexual, lembra Josué Machado. Já  as "coisas" nordestinas são sinônimas dos órgãos genitais, registra o  Aurélio. "E deixava-se possuir pelo amante, que lhe beijava os pés, as  coisas, os seios" (Riacho Doce, José Lins do Rego). Na Paraíba e em  Pernambuco, "coisa" também é cigarro de maconha. Em Olinda, o bloco
 carnavalesco Segura a Coisa tem um baseado como símbolo em seu  estandarte. Alceu Valença canta: "Segura a coisa com muito cuidado /  Que eu chego já." E, como em Olinda sempre há bloco mirim equivalente   ao de gente grande, há também o Segura a Coisinha.
 
 Na literatura, a "coisa" é coisa antiga. Antiga, mas modernista:  Oswald de Andrade escreveu a crônica O Coisa em 1943. A Coisa é título  de romance de Stephen King. Simone de Beauvoir escreveu A Força das  Coisas, e Michel Foucault, As Palavras e as Coisas.
 
 Em Minas Gerais, todas as coisas são chamadas de trem. Menos o trem,  que lá é chamado de "a coisa". A mãe está com a filha na estação, o  trem se aproxima e ela diz: "Minha filha, pega os trem que lá vem a  coisa!".
 
 Devido lugar
 
 "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça (...)". A garota de  Ipanema era coisa de fechar o Rio de Janeiro. "Mas se ela voltar, se  ela voltar / Que coisa linda / Que coisa louca." Coisas de Jobim e de  Vinicius, que sabiam das coisas. Sampa também tem dessas coisas (coisa  de louco!), seja quando canta "Alguma coisa acontece no meu coração",  de Caetano Veloso, ou quando vê o Show de Calouros, do Silvio Santos  (que é coisa nossa).
 
 Coisa não tem sexo: pode ser masculino ou feminino. Coisa-ruim é o  capeta. Coisa boa é a Juliana Paes. Nunca vi coisa assim! Coisa de  cinema! A Coisa virou nome de filme de Hollywood, que tinha o seu  Coisa no recente Quarteto Fantástico. Extraído dos quadrinhos, na TV o  personagem ganhou também desenho animado, nos anos 70. E no programa  Casseta e Planeta, Urgente!, Marcelo Madureira faz o personagem  "Coisinha de Jesus".
 
 Coisa também não tem tamanho. Na boca dos exagerados, "coisa nenhuma"   vira "coisíssima". Mas a "coisa" tem história na MPB.
 
 No II Festival da Música Popular Brasileira, em 1966, estava na letra das duas vencedoras: Disparada, de Geraldo Vandré ("Prepare seu  coração / Pras coisas que eu vou contar"), e A Banda, de Chico Buarque  ("Pra ver a banda passar / Cantando coisas de amor"), que acabou de  ser relançada num dos CDs triplos do compositor, que a Som Livre  remasterizou. Naquele ano do festival, no entanto, a coisa tava preta  (ou melhor, verde-oliva). E a turma da Jovem Guarda não tava nem aí  com as coisas: "Coisa linda / Coisa que eu adoro".
 
 Cheio das coisas
 
 As mesmas coisas, Coisa bonita, Coisas do coração, Coisas que não se  esquece, Diga-me coisas bonitas, Tem coisas que a gente não tira do  coração. Todas essas coisas são títulos de canções interpretadas por  Roberto Carlos, o "rei" das coisas. Como ele, uma geração da MPB era  preocupada com as coisas. Para Maria Bethânia, o diminutivo de coisa é
 uma questão de quantidade (afinal, "são tantas coisinhas miúdas"). Já  para Beth Carvalho, é de carinho e intensidade ("ô coisinha tão  bonitinha do pai"). Todas as Coisas e Eu é título de CD de Gal. "Esse  papo já tá qualquer coisa... Já qualquer coisa doida dentro mexe."
 Essa coisa doida é uma citação da música Qualquer Coisa, de Caetano,  que canta também: "Alguma coisa está fora da ordem."
 
 Por essas e por outras, é preciso colocar cada coisa no devido lugar.  Uma coisa de cada vez, é claro, pois uma coisa é uma coisa; outra  coisa é outra coisa. E tal coisa, e coisa e tal. O cheio de coisas é o  indivíduo chato, pleno de não-me-toques. O cheio das coisas, por sua
 vez, é o sujeito estribado. Gente fina é outra coisa. Para o pobre, a  coisa está sempre feia: o salário-mínimo não dá pra coisa nenhuma.
 
 A coisa pública não funciona no Brasil. Desde os tempos de Cabral.  Político quando está na oposição é uma coisa, mas, quando assume o  poder, a coisa muda de figura. Quando se elege, o eleitor pensa:  "Agora a coisa vai." Coisa nenhuma! A coisa fica na mesma. Uma coisa é  falar; outra é fazer. Coisa feia! O eleitor já está cheio dessas  coisas!
 
 Coisa à toa
 
 Se você aceita qualquer coisa, logo se torna um coisa qualquer, um  coisa-à-toa. Numa crítica feroz a esse estado de coisas, no poema Eu,  Etiqueta, Drummond radicaliza: "Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa,  coisamente." E, no verso do poeta, "coisa" vira "cousa".
 
 Se as pessoas foram feitas para ser amadas e as coisas, para ser  usadas, por que então nós amamos tanto as coisas e usamos tanto as  pessoas? Bote uma coisa na cabeça: as melhores coisas da vida não são  coisas. Há coisas que o dinheiro não compra: paz, saúde, alegria e  outras cositas más.
 
 Mas, "deixemos de coisa, cuidemos da vida, senão chega a morte ou  coisa parecida", cantarola Fagner em Canteiros, baseado no poema  Marcha, de Cecília Meireles, uma coisa linda. Por isso, faça a coisa  certa e não esqueça o grande mandamento: "amarás a Deus sobre todas as  coisas". Entendeu o espírito da coisa?
 
 Se não entendeu, desculpe qualquer coisa.

Um comentário:

  1. João Ubaldo Ribeiro em sua coluna no Globo de 24/04/11 escreveu sobre alguns vícios de linguagem que estamos nos acostumando a ouvir (e falar) ultimamente.

    Um deles é o uso indiscriminado do "você". Numa conversa em vez de se formular uma frase assim:
    "quando se comete um crime dessa natureza, tem de se estar preparado para os rigores da lei";
    formula-se dessa maneira: "quando você comete um crime dessa natureza, você tem que estar preparado para os rigores da lei".

    De um momento para o outro o interlocutor vira o próprio criminoso.

    Ou então a seguinte frase: "em alguns estados dos EUA quando se mata alguém, há condenação à pena de morte"; é alterada e termina assim: "em alguns estados dos EUA se você matar alguém, você para ser condenado à pena de morte".

    Ele também fez menção ao fato de estar bastante em voga a utilização de presidenta no lugar de presidente, quando o cargo é ocupado, obviamente, por mulheres. Segundo Ubaldo, apesar de "presidenta" já ter sido consagrado pelos dicionários, dever-se-ia atentar para a uma possível "morte" dos substantivos comuns de dois gêneros, afinal se já está sendo aceita a expressão "presidenta", daqui a pouco serão aceitas "estudanta", "gerenta", "residenta", "atendenta" e, por que não, "motoristo"?

    Ele termina o texto dizendo que pelo que se sabe a presidente Dilma prefere a grafia "presidenta", e que se é assim, ele, João Ubaldo" se reserva ao direito de chamá-la de governanta, em vez de governante, hehehe.

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